Prestes a sair do papel, universidade indígena será passo importante na educação escolar dos povos originários
19/04/2025
(Foto: Reprodução) A educação escolar indígena, que já foi um instrumento para o genocídio dos povos, hoje é ferramenta para a construção de espaços que permitam o trânsito das pessoas por diversos campos de saberes Um dos desafios é promover uma política educacional dos povos indígenas considerando a diversidade entre eles.
Ana Coutinho/TV Globo
Neste 19 de abril, o Brasil celebra em plena Semana Santa o Dia Nacional dos Povos Indígenas. Ocasião mais do que apropriada para jogar luz sobre uma iniciativa inédita, histórica e prestes a sair do papel: a criação da Universidade Indígena. É o que detalha em seu artigo abaixo o professor e pesquisador da Faculdade Intercultural Indígena, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Eliel Benites. Eliel também é formado em Licenciatura Intercultural Indígena Ára Verá (espaço-tempo iluminado), graduado em Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu, mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco e Doutor em Geografia, também pela UFGD.
A presença dos estudantes indígenas nas universidades tem crescido nos últimos anos. Os jovens indígenas buscam no ensino superior uma forma de vencer as dificuldades que vivenciam, mas também como um processo de resistência e fortalecimento cultural.
Precisamos construir valores humanos que permitam o trânsito das pessoas por diversos campos de saberes. Como indígenas, sabemos que temos que transitar entre os conhecimentos ocidentais sem ser encantados por ele ou transformá-lo em verdade absoluta. É isso que possibilita o verdadeiro diálogo.
É a partir dessa perspectiva que temos discutido, no Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Educação (MEC) e outras instâncias do governo, a criação de uma universidade indígena no Brasil. O Grupo de Trabalho Nacional da Universidade Indígena, criado pelo MEC em 2024, tem trabalhado para finalizar a proposta ainda esse ano.
A universidade indígena será um passo importante numa longa e árdua caminhada dos povos rumo a uma educação escolar indígena que verdadeiramente respeite a diversidade cultural de indígenas e não indígenas, e também entre os muitos povos indígenas do país.
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Educação como forma de apagamento
A história da educação formal, no contexto dos povos indígenas, é marcada por momentos distintos. O primeiro deles tinha a educação como elemento da colonização e extinção dos povos indígenas. Como ponto de chegada, essa educação buscava a construção da “sociedade brasileira” — uma sociedade com cultura, língua e valores únicos. É, portanto, uma história de genocídio, em todos os aspectos: linguístico, cultural e físico também.
Já o século 20 foi muito marcado pela educação integracionista, com a ideia de utilizar a língua e os valores indígenas como meios para que os indígenas deixassem sua cultura e se integrassem à sociedade brasileira. Utilizava-se a minha língua, o Guarani, por exemplo, para poder aprender português. E, aprendendo o português, a ideia era abandonar o Guarani.
Uma metodologia, claramente, marcada pelo preconceito, e que perpetuava uma violência no processo educativo, com apagamentos, violência física contra os alunos e traumas psicológicos coletivos.
Educação indígena na Constituição de 1988
Vivemos muitos séculos — de 1500 até o final do século 20 — com um modelo de educação que exterminava os indígenas. Foi só a partir da Constituição de 1988 que iniciamos o processo de construção de uma nova educação indígena, que se propõe a promover o fortalecimento da identidade dos povos.
A educação escolar indígena está intimamente ligada às pautas das lutas dos povos indígenas. A Constituição determina que os indígenas têm o direito de ser indígenas, de ter sua língua, sua cultura. Enfim, de ser diferente. Essa é a base fundamental da mudança constitucional, que orienta também a prática educacional.
A partir daí, passamos por um tempo necessário para a regulamentação da Constituição. Na década de 1990, participamos de muitos debates que levaram, por exemplo, à construção da Lei de Diretrizes Curriculares (LDB), que regulamenta a educação indígena, o bilinguismo, as questões curriculares e de gestão da educação escolar indígena.
De 1988 até hoje é um período curto para recuperar todo o processo de genocídio cultural. Por isso, precisamos estar num ambiente de permanente construção metodológica da educação escolar indígena.
No campo das ideias, a educação indígena é perfeita. Na prática, contudo, ainda há vários problemas que ainda precisam ser resolvidos, como a introdução dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas no contexto da educação escolar, a falta de formação adequada de professores indígenas e o reconhecimento desse contexto intercultural, em que haja o diálogo entre o conhecimento ocidental, acadêmico, e os conhecimentos tradicionais.
A prática pedagógica deveria ser um espaço de constante experimentação. A própria avaliação da educação escolar indígena deveria ser diferenciada, mas ainda segue a lógica de que a qualidade da educação está no modelo conteúdista, racional.
Ou seja, propõe-se uma educação diferenciada, específica, mas a estrutura — de formação, de avaliação, de fomento, de promoção de políticas públicas — segue atrelada ao modelo tradicional. Esse é um dos desafios que vivemos hoje.
Diversidade entre os povos
Outro desafio que enfrentamos é como promover uma política educacional dos povos indígenas considerando a diversidade entre eles. De acordo com o IGBE (com dados de 2010, porque os dados atuais ainda não foram disponibilizados), temos hoje no Brasil 305 povos indígenas, que falam 274 línguas diferentes.
Uma das características das políticas públicas é que sejam uma ação global para todos, mas isso gera uma dificuldade quando se trata de povos indígenas, porque cada realidade, cada povo, é diferente, em termos linguísticos, culturais, históricos, de memória.
Por isso, estamos hoje trabalhando junto ao MEC na ideia de pactuação e repactuação de Territórios Etnoeducacionais. Esses territórios são conjuntos de ações de gestão e promoção de educação escolar indígena conforme a lógica dos povos e regiões do país, para garantir o respeito a essa diversidade. Estamos caminhando nesse sentido, mas, para isso, é preciso reformular a própria estrutura do MEC e da oferta de educação escolar indígena.
Papel das universidades no processo
A partir da educação escolar indígena foram sendo criadas e edificadas e as ideias curriculares, na perspectiva do diálogo dos saberes e da introdução dos saberes tradicionais no contexto de ensino formal. E isso se reflete também na própria academia e no papel das universidades nesse processo.
A crescente presença dos jovens indígenas nas universidades provoca as instituições a criarem experiências regionais de formação específica, políticas de acesso a estudantes indígenas, cotas. A realidade indígena é diferenciada e a universidade tem que se adequar para receber essa comunidade acadêmica diferenciada.
Já houve um avanço significativo dentro das instituições de ensino, mas ainda há muito o que se avançar na perspectiva de como receber os indígenas com seus conhecimentos tradicionais. O que fazer com esses conhecimentos? Esse é um debate que tem que ser feito nas universidades em termos epistemológicos: como fazer orientação acadêmica, como se dá a construção dos conhecimentos? É um desafio muito grande em todos os campos do conhecimento.
Essa é uma situação para a qual não existe receita ou parâmetro, mas é preciso iniciar essa reflexão. O que existem são alguns princípios para orientar esse processo de construção.
Um desses princípios seria trazer o universo conceitual dos povos para a academia. Um exemplo disso é a palavra território, hoje muito utilizada. No conceito ocidental, a ideia do território é o lugar sobre o qual o sujeito tem domínio, influência. Parte da ideia de que o homem domina a natureza.
Na perspectiva dos povos indígenas, o sujeito é parte de uma rede de conexões dos seres de um lugar. E o território é o conjunto de elementos naturais que compõem o equilíbrio pleno desse lugar. O sujeito humano, como organismo, não é o dono, é parte daquele conjunto de redes, sistemas e memórias acumuladas ao longo do tempo no território.
A construção de um conhecimento que aceite e respeite diferentes universos conceituais depende de diálogo, o que exige uma construção permanente: um território de diálogo.
Como será a Universidade indígena
A nova universidade indígena pode ser um espaço privilegiado de criação dessa espécie de cartografia consensual a partir do diálogo dos saberes. Para isso, ela tem que estar baseada na perspectiva da interculturalidade dos saberes e da existência, o que vai desafiar muito da metodologia dos professores.
Fizemos algumas consultas aos povos indígenas no início do processo e estamos agora trabalhando no projeto de criação dessa universidade que considera territórios, povos, presença de professores e acadêmicos indígenas. Uma universidade que deverá fortalecer políticas linguísticas, memórias, museus e patrimônios culturais indígenas. Não será uma universidade restrita a um espaço, com um único campus, mas uma universidade em rede, que se conecta com diferentes povos, territórios e biomas.
A universidade indígena deverá ter cursos específicos, ou cursos com currículos diferenciados. Trata-se de uma união de saberes distintos, feita de forma estratégica, para que possamos, de fato, construir outros campos de conhecimento.
Devemos ser uma geração que busca o diálogo dos saberes, numa perspectiva em que o saber ocidental não será hegemônico, mas será parte desse processo de construção de um novo conhecimento. Esse é o caminho, mas ele é longo e tortuoso.
Eliel Benites não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.
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